di Luciana M. Marchini Ulgheri

UOMINI DA UNA PARTE, DONNE DALL’ALTRA. ED IO?

LA MASCOLINITÀ E LE ISTITUZIONI BRASILIANE NEL CONTESTO DI PRINCESA

Abstract italiano

L’articolo si divide in due parti; nella prima viene proposta una riflessione sulla nazionalità letteraria di Princesa, in quanto fino ad oggi il libro è stato considerato parte del fenomeno letterario conosciuto come Letteratura Italiana della Migrazione. Princesa però, anche in virtù di una singolarissima genesi linguistico-letteraria, problematizza la nozione di Letteratura Italiana della Migrazione e può essere visto come un elemento estraneo al corpus. Se consideriamo infatti elementi come lingua e nazionalità dell’autore, colore locale, ricezione dell’opera – tutti elementi che dal Romanticismo in poi sono serviti come base per la classificazione storico geografica di un’opera – il testo in questione potrebbe appartenere tanto al sistema della letteratura brasiliana, quanto a quello della letteratura italiana. La singolarità di questo testo consiste nella relazione stabilita tra amici – Fernanda, Giovanni e Maurizio –, grazie alla quale si è giunti alla redazione di Princesa. Da questo punto di vista, il testo sembra ispirarsi alla “Poetica della Relazione” proposta da Edouárd Glissant e perciò, in quanto alla nazionalità letteraria, la migrazione resta elemento costitutivo di Princesa. Nella seconda parte si procede ad un’analisi della costruzione dei modelli di mascolinità egemonica nelle istituzioni brasiliane (famiglia, esercito, chiesa e scuola) che fanno da sfondo al raconto. Il libro di Farias e Iannelli, infatti, induce Il lettore a riflettere sulla stabilità dell’universo fallogocentrico poiché Princesa fluttua tra un sesso e l’altro, un genere e l’altro, finendo per revocare in dubbio le dicotomie che solitamente definiscono, non soltanto nel contesto brasiliano, maschile e femminile.

 

*

Resumo: O presente trabalho analisa a construção das masculinidades hegemônicas no âmbito das instituições família, igreja, escola e forças armadas no contexto da obra Princesa, de Fernanda Farias de Albuquerque. Ela, uma transexual brasileira, escreveu sua (auto)biografia com Maurizio Jannelli, um ex-membro das Brigadas Vermelhas, dentro de um cárcere romano. O livro foi publicado primeiro na Itália, fato que tem causado grande discussão sobre sua nacionalidade literária, o que para nós figurará sempre num eterno “entrelugar”.

Palavras-chave: masculinidades; Princesa; entrelugar; instituições brasileiras.

 

Algumas reflexões sobre a nacionalidade literária de Princesa

Algumas obras são de difícil classificação e inserção em um único sistema literário. Talvez o exemplo mais bem acabado desta indefinição em relação à nacionalidade literária seja Franz Kafka, autor nascido na antiga Tchecoslováquia, mas que escolheu escrever sua obra em língua alemã. De qualquer forma, nestes últimos anos o debate tem se tornado mais acirrado do que nunca em virtude dos intensos fluxos migratórios de nossa época, haja vista que tal situação se constitui um terreno fértil para que muitos migrantes se tornem escritores na terra de acolhimento ou faz com que aqueles que já escreviam em sua terra natal passem a escrever na língua do país de chegada. Essa é a situação atual das letras italianas que, tardiamente em relação a outros países europeus, como França e Inglaterra, está “hospedando”   escritores   não   nativos   dentro   do   fenômeno   conhecido   como Letteratura Italiana della Migrazione. Em linhas gerais, Armando Gnisci, primeiro teórico a se debruçar sobre este novo fenômeno literário, o define como uma literatura “constituída por uma heterogeneidade de escritores que usam o italiano, e que inclui tanto autores [italianos] emigrados da Itália, quanto autores [estrangeiros] imigrados em nosso país dos mais variados países” (Gnisci 2003: 112).

A proposta de se estabelecer uma conexão entre o passado da emigração italiana, já relativamente distante no tempo, e esta nova realidade de imigração na Itália, deve ser valorizada, porém tal nomenclatura tem sido aplicada somente para os escritos dos migrantes contemporâneos, ou seja, aqueles que chegaram ao país a partir dos anos setenta do século passado. Tanto isso é verdadeiro que a data de nascimento de tal fenômeno é marcada pela publicação de Dove lo Stato non c’è: Racconti Italiani (1991), no qual consta o conto “Villa Literno” que narra a história do assassinato do trabalhador sul-africano Jerry Masslo por um grupo de jovens italianos no sul do país em 1989. A ficcionalização deste episódio pelo escritor franco- marroquino Tahar Ben Jelloun dará início a uma literatura que começa por reunir “retalhos” representativos dessa nova realidade que se configura na Itália. Nestes pouco mais de trinta anos de existência, a literatura migrante italiana já conta com mais de quatrocentos escritores vindos de mais de noventa países diferentes, sendo que vinte e quatro são de origem brasileira[1].

Dentro deste fenômeno destaca-se Princesa, obra publicada pela Sensibili alle foglie, editora italiana gerada dentro do cárcere de Rebibbia na cidade de Roma. Escrito a quatro mãos por Fernanda Farias de Albuquerque e Maurizio Jannelli, o texto nasce de uma narrativa em três vozes, tendo sido transformado em livro em 1994. Ela, uma transexual brasileira, presa por tentativa de homicídio e ele, um ex- membro das Brigadas Vermelhas, condenado à prisão perpétua devido a sua militância política. Ambos em celas separadas, presos no cárcere romano. Neste cenário a autora escreve sua história em um caderno de capa amarela que viaja de sua cela até àquela do outro autor através de um amigo em comum: Giovanni Tamponi, um ex-assaltante de bancos de origem sarda.

Princesa possui uma singular gênese linguística e literária. A autora foi encorajada a escrever por Giovanni Tamponi que lhe ensinou a “sua” língua italiana, ou seja, muito contaminada pela sua língua natal, o sardo. Assim foram escritos muitos dos episódios que compõem a sua narrativa, numa língua híbrida que compreende um misto de “italiano de rua” com forte cunho coloquial, e a inevitável presença do substrato linguístico português e sardo. Maurizio Jannelli, ao entrar em contato com os manuscritos, de acordo com Fernanda e Giovanni, escreveu o livro neles baseado. Nasce a personagem Princesa, fruto dos escritos autobiográficos de Fernanda, de sua narração oral e da escritura final de Maurizio Jannelli. A obra narra a história da coautora desde sua infância e adolescência em Remígio, no interior do estado da Paraíba, até sua chegada à Europa onde é presa na Itália por tentativa de homicídio.

Considerado um dos primeiros exemplos do relativamente recente fenômeno literário italiano, Princesa é um texto que apresenta questões inquietantes e se abre a interpretações que levam o leitor a refletir sobre a estabilidade do mundo falologocêntrico. A obra coloca em discussão a concepção de corpo único e de uma orientação sexual pré-determinada pela biologia, ao mesmo tempo em que entrelaça a narrativa com a questão migratória. Desse modo, ao mesmo tempo em que a personagem flutua de um sexo a outro, de um gênero a outro, problematizando e questionando as dicotomias que definem homem e mulher, masculino e feminino, Princesa, o livro, oscila dentro da Letteratura Italiana della Migrazione, podendo mesmo ser visto como um elemento estranho neste corpus, na medida em que se levarmos em consideração os elementos língua, nação, nacionalidade do autor, cor local, temática, recepção da obra que, desde o Romantismo, com algumas variações, vêm servindo de base para a classificação de uma obra como expressão de uma determinada literatura nacional, o texto em questão poderia ser requerido tanto pelo sistema da literatura brasileira, como por aquele da literatura italiana, como observa Laura Gandolfi (2010: 77):

 

[…] o fato de que o [livro] foi e continua sendo a ser considerado como pertencente à literatura italiana contemporânea – leiase, literatura migrante em língua italiana, apesar de Fernanda Albuquerque ser de nacionalidade brasileira e grande parte do texto tratar de sua vida no Brasil, e não na Itália –, necessariamente, gera uma série de perguntas referentes a estruturas literárias nacionais e os limites que neste caso definem literatura brasileira, por um lado, e italiana, por outro.[2]

 

Se levarmos em consideração o fato de Princesa ter como autora e protagonista uma brasileira e de os originais terem sido escritos tendo como substrato linguístico predominante a língua portuguesa do Brasil; de as ações da personagem terem se desenvolvido majoritariamente em território brasileiro; de terem sido usadas metáforas, figuras de linguagem e de pensamento, lendas e tradições da cultura brasileira que, por sua vez, “obrigaram” o coautor a se informar sobre a cor local, com vistas a dar uma versão definitiva à história em língua italiana; de a tradução da mesma para o português ter se dado em seguida à publicação italiana, a obra pode ser vista como pertencente ao conjunto da literatura nacional brasileira ou como literatura brasileira escrita, mas melhor, publicada em italiano.

Se por outro lado levarmos em consideração que a obra é também assinada por um escritor italiano e que este autor foi dotado, em última instância, do poder de escrever a história de Fernanda de acordo com sua capacidade de escutar e de transmiti-la para o maior número de pessoas possível na sua língua natal, ou seja, o italiano, aliado ao fato de que Jannelli se viu diante de um universo desconhecido – tanto em termos da migração de gênero como em termos de Brasil – e por isso mesmo “manipulou” a escritura original de modo a “torná-la acessível a um público maior” (Jannelli 1995: 10); que o livro foi editado e publicado na Itália, e que sua primeira e grande recepção e repercussão se deu em terras peninsulares [3], é possível afirmar que a obra pode ser considerada também literatura italiana. Ou mesmo literatura italiana com fortes traços de Brasil. Nesta linha a pesquisadora Anna Proto Pisani credita a Maurizio Jannelli a valência literária do livro ao argumentar que

 

[…] Fernanda Farias não é uma verdadeira escritora, não o foi antes deste texto e não o será depois. A dimensão literária do texto é devida a Jannelli, que ao contrário, possui uma veia literária e ainda continua a desenvolver atividade literária como autor no âmbito televisivo (Pisani 2008: 246)[4].

 

Apesar dessas considerações, Pisani não deixa de observar que tal dimensão literária contida no texto foi possível graças à força explosiva da língua de Fernanda: “comparável à subversão da sua vida, com neologismos e imagens únicas” (Pisani 2008: 246). Com base nessas observações, podemos inferir que esta experiência de colaboração na escritura de Princesa é um caso único no panorama da chamada literatura migrante em língua italiana, e não somente naquele sistema. E que a marca desta escritura é a relação que se instaura entre Fernanda, Giovanni e Maurizio que, por suas vezes, projetam na escritura de vida da autora o sonho de costurar os fragmentos das suas próprias vidas no cárcere e de viajarem para além dos muros da prisão perseguindo Fernanda do Brasil à Itália. Assim, a escritura se torna o espaço aberto para o encontro e para o recíproco conhecimento. Esta singularidade da obra é que a faz muito próxima ao que Édouard Glissant chama de a “Poética da Relação”, na qual se preconiza o ser não como absoluto, mas como “relação com o outro, relação com o mundo, relação com o cosmos” (Glissant 1996: 37). Desse modo, fazendo uma analogia com o pensamento de Glissant, podemos admitir que a história contada por Fernanda constitui-se um rizoma que foi ao encontro de outras raízes (seus amigos) de modo que “o que se torna importante não é tanto um pretenso absoluto de cada raiz, mas o modo, a maneira como ela entra em contato com outras raízes: a Relação” (Glissant 1996: 37), neste caso, materializada pela publicação do livro. Sendo assim, em termos de nacionalidade literária, Princesa não se define e continua a transitar, como a própria personagem, entre uma margem e outra no seu eterno entrelugar, conforme preconizado por Silviano Santiago. É por esse motivo que pedimos licença para tratar neste artigo das masculinidades hegemônicas nas instituições brasileiras tais como a família, a igreja, a escola e o exército presentes na formação da personagem Princesa, independentemente da inserção imediata ou não da obra na literatura brasileira.

A formatação do indivíduo nas instituições em Princesa

É recorrente no pensamento dos estudiosos que se debruçam sobre a questão de gênero e sexualidade a ideia de que os mesmos são construídos culturalmente de acordo com os objetivos políticos da classe dominante. A noção de sexo e gênero nasce com a sociedade burguesa que utilizou como base para essa “invenção” a divisão do trabalho, melhor dizendo, a divisão social e econômica do trabalho. Neste contexto encontra-se também a mais importante delas, ou seja, a divisão sexual do trabalho na qual os corpos foram otimizados tendo em vista uma maior produção no âmbito de uma divisão social que levava em consideração a dicotomia dos sexos e, consequentemente, dos gêneros. Segundo Foucault (1985), o controle e a disciplinarização dos corpos se constituíram a força motriz indispensável ao desenvolvimento do capitalismo que, com base no natural, no biológico, na diferença sexual, tornou-se cada vez mais hegemônico. Por um lado, o modelo heteronormativo torna-se um dos pilares do complexo modo de produção capitalista e, por outro, os valores burgueses consolidam o modelo da família patriarcal no qual a mulher reprodutora e seus filhos representam um dos pilares que alimenta a reprodução capitalista sob a dominação masculina.

Em   linhas   gerais,   essa   é   a   constituição   do   patriarcado   ocidental   que influenciará sobremaneira a elite brasileira do final do século XIX que, inspirada na biopolítica, ou seja, em um conjunto de saberes e práticas que disciplinam os corpos e regulam a vida das populações (Foucault 1985: 131), irá colocar em marcha uma demanda de medidas moralizantes e disciplinadoras voltadas para um progressivo embranquecimento da população através do incentivo à imigração de europeus (Miskolci 2012: 50). Isso porque, segundo o sociólogo, a biopolítica no Brasil se caracterizou pelo medo que a classe dominante brasileira tinha da degenerescência da raça muito em discussão no contexto da abolição da escravatura. Neste cenário, a construção da nação exigia o “agenciamento” do desejo que caminhasse em direção às formas ideais, ou seja, um casal heterossexual, reprodutor, monogâmico, estável e branco. A reprodução miscigenada tinha sempre como objetivo embranquecer a raça, de modo que a escolha por uma mulata era aceitável, mas as mulheres negras excluídas deste modelo, como nos faz entender Miskolci (2012: 42):

 

No Brasil, a preocupação coletiva com a sexualidade emergiria na intersecção dos discursos políticos, científicos e literários sobre a nação brasileira que seguiam objetivos como o de branqueamento/civilização de nosso povo por meio de práticas claramente discriminatórias ou formas sutis de rejeição, disciplinamento e controle das relações íntimas, particularmente as afetivas e sexuais, conformadas ao ideal reprodutivo (portanto heterossexual), branco, viril.

 

No nosso particular processo de construção de nação, a questão racial passa a ser associada aos “desvios”. Negros, mulatos, mulheres, homossexuais passam a ser percebidos como uma ameaça à ordem e vinculados à anormalidade, demandando assim a ação disciplinadora e controladora do Estado.

Embora distante no tempo, percebemos que tais pressupostos ainda se mantiveram presentes nas instituições brasileiras nos anos setenta do século passado em Remígio, uma pequena cidade do interior da Paraíba, conforme as narrações de Fernanda Farias de Albuquerque constantes em Princesa, sua (auto)biografia, que ora começamos a analisar tendo em vista a impossibilidade ou a dificuldade de inserção na sociedade de pessoas consideradas “anormais” pelo fato de encontrarem-se suspensas entre um sexo e outro.

A narrativa de Princesa é a história de uma protagonista que se conta com vários nomes – Fernando, Fernanda, Princesa –, em diversos corpos, em diversos espaços e através de algumas línguas. Em eterna transição, o texto é estruturado em grande parte em duas linhas que caminham paralelas: uma, objetiva, na qual a personagem viaja através do espaço geográfico em sua migração por várias cidades brasileiras e europeias ao mesmo tempo em que realiza a transição íntima de sua identidade sexual vivida na autoconsciência de gênero e na migração física entre os sexos com a finalidade de aproximar-se da dimensão biológica do sexo feminino. A outra linha, subjetiva, na qual a personagem, em eterna contradição consigo mesma, abraça e rejeita sua educação, seus valores morais e éticos que lhe foram transmitidos por Cícera, sua mãe. Destarte, Princesa, a personagem, flutua entre a repetição acrítica e o repúdio ao mundo de convicções de sua mãe e o desejo irrefreável e instintivo de viver a sua própria vida coerentemente à identidade que escolheu para si.

“‘Negro quando não caga na entrada, caga na saída’. Cícera não admitia contestação. Eu tinha mamado no seio dela. Tinha sugado toda aquela lista do Bem e do Mal, dos Bons e dos Maus” (Albuquerque; Jannelli 1995: 71)[5]. É assim que Princesa, anos mais tarde, tratará de explicar as constantes contradições entre suas ações e seus pensamentos; entre aquilo que lhe fora ensinado e sua mundivivência, construções que, no mais das vezes, vão se mostrar invertidas, ou seja, a lista do Bem e dos Bons se transforma na lista do Mal e dos Maus. O elemento central da sua educação foi Cícera Maria da Conceição, esposa de Manuel Farias de Albuquerque e mãe de Adelaide, Alaíde, Aldenor e Fernando. Ela é uma mulher que, após tornar-se viúva, assume toda a responsabilidade da casa, da criação dos filhos e da administração da pequena propriedade rural deixada pelo marido no interior da Paraíba. Os filhos, todos já casados, deixaram-na só com o filho menor e se mudaram para grandes cidades do Brasil em busca de uma melhor situação financeira. Talvez, por ter de assumir todas as responsabilidades da casa após a morte do marido e convicta de não querer contrair outro matrimônio, a matriarca seja descrita como uma pessoa muito respeitada na vizinhança e de posições muito firmes, mas ao mesmo tempo muito amorosa e dedicada ao único filho a quem ainda restava criar – Fernando, que neste momento tem apenas seis anos de idade.

Na narrativa, Cícera representa o paradigma cultural de uma humilde moradora de uma pequena cidade do interior do Brasil. Impregnada de uma religiosidade simples, seu monoteísmo católico excludente interpreta a realidade em seus dois extremos: Deus e o Diabo, o Paraíso e o Inferno, sem deixar espaço para o Purgatório. O mundo binário de Cícera também atua em outras frentes, pois para ela economicamente só há ricos e pobres; sexualmente só há homens e mulheres; eticamente o certo e o errado e, moralmente, o bem e o mal. Nos trechos seguintes, temos alguns exemplos da visão de mundo de Cícera:

 

Na terra tem a igreja e a prisão. Quem vai à igreja vai para o céu, quem vai para a prisão vai para o inferno. Cícera me queria no céu e me levava à igreja (Albuquerque; Jannelli 1995: 39).

 

Cícera correu à minha cabeceira, foi ela quem me apresentou Sauro. Tinha se aproximado do homem de leis com deferência de camponesa e o eterno problema de briga na demarcação das nossas terras. Depois, com orgulho, compensou sua ignorância exibindo a obra-prima: Este é meu filho! Ah! Sauro Afonso me esquadrinhou rapidamente, um olhar e entendeu tudo, o professor. Ele se vestia de cultura, até de pijama a ostentava. Mesmo nu não era como os outros. No hospital, com o “bom dia” punha cada um no seu lugar. À distância justa. Pediu e obteve um leito no meu quarto: Junto a este bom rapaz que logo estará curado e voltará aos estudos. Cícera foi embora feliz e tranquila com a nova proteção (Albuquerque; Jannelli 1995: 49).

 

Cícera vivia simples: mulheres de um lado e homens do outro (Albuquerque; Jannelli 1995: 44).

 

 

Estes cenários ilustram muito bem o ambiente familiar no qual Princesa foi criada: uma família mononuclear tendo a mãe como centro, em razão da viuvez e, sobretudo, da ausência dos filhos, homens migrantes em busca da sorte em outras cidades do Brasil, mas encarnando todo o receituário do patriarcado, inclusive aquele da obediência e respeito aos ricos e poderosos, tão típico do coronelismo nordestino. Cícera, com certeza, jamais poderia imaginar que ao deixar o filho no hospital “aos cuidados” do professor advogado, o estava entregando a um “desviado” escondido no saber e na riqueza (Albuquerque; Jannelli 1995: 49). A matriarca também não se esqueceu de ensinar o filho que os negros são “inferiores” e, por isso, deveriam ser sempre vistos com desconfiança, como sugere o adágio proferido por Fernanda (Albuquerque; Jannelli 1995: 71).
A educação dada por Cícera, contudo, não foi suficiente para fazer com que o pequeno Fernando deixasse de “fazer coisas do demônio”, em princípio com seus amiguinhos e primos:

 

Eu era a vaca, Genir o touro, Ivanildo, o bezerro. Short e camiseta despidos com pressa dentro do mato. Longe de todos, era o segredo. Genir mugia e me perseguia. Uma brincadeira de empurrões, pegação e respirações ofegantes. Ele montava a vaca, endemoninhado em cima de mim. Mexia, feito filhote de bicho trepado na perna do dono. Pinto de menino e esfregação. Ivanildo, o bezerro, priminho desajeitado, enfiava o focinho naquele inferno. Umedecia e chupava abaixo da minha barriga. Oh Ivanildo, procura a teta! A minha pequena teta. Engolida, mutilada. Cócegas e um arrepio de alegria. Com Genir melado e sem fôlego, o jogo tinha acabado E eu, acabado[6]. Mas Ivanildo recomeçava. Ei, tem a ovelha e o carneiro, o gato e a gata (Albuquerque; Jannelli 1995: 26).

Fernandinho, que alegava aos sete anos de idade não saber o que era pecado (Albuquerque & Jannelli 1995: 30), ao contrário dos outros amigos e primos, levava diversas surras de sua mãe por causa dessas brincadeiras e, por isso, lhe perguntava: “Por que você bate em mim e tia Maria não bate em Genir? Porque quero criar um filho e não um malandro”, era a resposta de Cícera que aproveitava para repetir o refrão: “Se fizer as coisas do diabo, vai para a prisão e para o inferno!” (Albuquerque & Jannelli 1995: 32). Na verdade, Fernandinho apanha porque está transgredindo um dos pilares da masculinidade: o fazer-se de mulher para os amigos. O historiador George Mosse, ao falar sobre racismo e homossexualidade em uma entrevista concedida a Enzo Cuoco na Rivista Sodoma, afirma que

 

A confusão entre os sexos é então considerada como um ataque contra a inteira sociedade. Desde a Idade Média e em maior grau no século XIX, uma das acusações contra os homossexuais foi aquela de assumir o papel feminino no ato sexual. A confusão entre os sexos e entre os correspondentes papéis econômicos e sociais que dela derivam é completa (Mosse 1994) [7].

 

Assim, ao trair sua masculinidade manifesta, Fernandinho estava, segundo sua mãe, deixando de estar no caminho correto para se tornar um homem e andando a passos largos em direção à malandragem, algo que significa abrir mão de ser uma pessoa respeitável, pois “Historicamente a respeitabilidade se baseia sobre um certo tipo de divisão entre os sexos e se difunde junto à ideia do macho, da superioridade masculina”, entendida como “superioridade heterossexual” (Mosse 1984)[8].

Cícera argumenta suas posições em relação à educação dada aos filhos, em última instância baseada nos preceitos morais da Igreja Católica, frequentada assiduamente por ela. A Igreja, baseada no Gênesis bíblico, defendeu e divulgou o mito fundador da espécie humana, aliás, o mais fortemente difundido nas sociedades ocidentais, no qual a mulher e o homem ocupam posições hierárquicas bem definidas e imutáveis: o homem definido como superior por tomar para si a missão do trabalho e assim prover a família, e a mulher vista como inferior por dever obediência ao homem e por ser estigmatizada pela sua função meramente reprodutora.

No contexto de uma pequena cidade rural do interior do Brasil, nos anos setenta do século passado, a Igreja é um importante braço auxiliar na educação das crianças e, consequentemente, na consolidação dessa representação de gênero, concebida como única, imutável, natural e imprescindível para a formação de uma sociedade respeitável. Destarte, não por acaso Cícera, na sua condição de viúva, se apoia nos valores perpetuados pelo catolicismo com a intenção de levar o filho a trilhar um caminho que o distanciasse de um futuro desonesto e desonrado. Portanto, Fernandinho vai à missa, porque “Na terra tem a igreja e a prisão. Quem vai à igreja vai para o céu, quem vai para a prisão vai para o inferno. Cícera me queria no céu e me levava à igreja” (Albuquerque; Jannelli 1995: 39). Em linhas gerais, baseado nos dez mandamentos, o pároco da igreja local “aperta” o jovem Fernando no confessionário:

 

– Você rouba?

– Sim, uns trocados.

– Calunia?

– Não, não difamo ninguém.

– Briga?

– Sim, às vezes na escola.

– Faz coisa suja?

– Não!

(mentia, não entendia)

– Tem algum pecado que você não consegue confessar?

– Não!

Como penitência tive que rezar dez pais-nossos, dez ave-marias, dez salve-rainhas. A segunda vez foi diferente:

– Você rouba?

– Sim, uns trocados.

(na feira comprava esmalte e batom mas guardei segredo)

– Faz coisa suja?

(fiquei vermelho de vergonha)

– Fala! Você tem o que confessar mas não confessa! Faz coisa suja?

– Sim, faço.

– Com seus amiguinhos ou com suas amiguinhas?

– Vou com os meninos.

– Você se faz de mulher para seus amigos?

– Sim, me faço de mulher para eles.

– Se você repetir isso, vai para o inferno!

Triplicou a penitência: e dentro de uma semana quero você novamente no confessionário
(Albuquerque; Jannelli 1995: 40).

 

Neste questionário feito pelo padre ao jovem, podemos identificar dois pontos importantes. Na primeira confissão, Fernando responde que não havia feito nenhuma “coisa suja” por não entender a pergunta. Ele não faz a associação entre suas brincadeiras com os amigos a algo que seja condenável, por isso não confessa. Na segunda confissão, o menino já tinha conhecimento do que era pecado, devido principalmente às surras administradas por sua mãe e, desse modo, admite que se faz de mulher para os seus amiguinhos. Apesar de a Bíblia não hierarquizar os pecados, como se pode constatar em 1 Coríntios 6: 9-10[9], e Fernandinho ter aumentado somente um pecado em relação à confissão anterior, o pároco lhe triplica a pena, o que demonstra o quanto era necessário incutir na cabeça de todos os fiéis as representações de gênero hegemônicas a fim de manter a estabilidade social. A punição triplicada e a intimação de retorno do menino ao confessionário em uma semana demonstram o importante papel das instituições eclesiásticas na construção social dos sexos via disciplinarização e controle dos corpos e do desejo através da expiação do pecado, das rezas penitentes e da exposição pública do “pecador”:

 

Se há um diabo no meio de vós, que se retire! Eu tinha certeza, o diabo era eu. Fiquei de todas as cores. Ele me fixou do púlpito, calou a algazarra dos machos. A calamidade se abatia sobre mim e enchia de insultos até mesmo a igreja, onde eu marcava encontros secretos e pecados no rio. “Se há um diabo no meio de vós, que se retire!” Ele fez o sinal-da-cruz, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e iniciou a Santa Missa. Saí da igreja de cabeça baixa (Albuquerque; Jannelli 1995:41).

 

 

Desse   modo,   Fernandinho   é   mais   uma   vez   punido   severamente   por transgredir os limites das funções do homem e da mulher e, por esse motivo, é considerado uma ameaça para a sociedade que achincalha, exclui, agride e violenta física e moralmente o menino:

Na mesma noite João Paulo me pegou pelo pescoço e me arrastou para o mato: Estou de pau duro, pau de homem grande, veadinho! Os outros viam e ouviam. Gargalhavam. Não, com você não quero! […]. Mas ele me pegou pelo pescoço e me resignei a sucumbir na chacota, nos gritos, no entusiasmo animal (Albuquerque; Jannelli 1995: 40).

 

Em uma sociedade assim constituída, na qual os comportamentos considerados desviantes devem ser expurgados da vida social, é coerente visualizar nos relatos de Princesa a hipocrisia daqueles que secretamente o tomavam por amante, mas, que na vida pública cotidiana, o rechaçavam. Paradoxalmente, essa se torna a arma do menino ao perceber que poderia se livrar de situações desagradáveis ao simplesmente ameaçar contar os segredos daqueles que têm uma imagem a zelar: muitos deles pais de família e pessoas respeitáveis na cidade, como era o caso de João Paulo da citação acima, que só não estuprou Fernandinho porque este teve “um lampejo de ódio: conto tudo a sua mulher, seus filhos! Ele grunhiu umas palavras, o porco: Se você fizer isso eu te mato. Três pauladas no meio das costas me derrubaram no chão. Era certo, ele teria me matado” (Albuquerque; Jannelli 1995: 40-41).
Situações de violências físicas e psicológicas sofridas pelo(a) protagonista são uma constante durante toda a narrativa. No ambiente escolar não se deu de outra forma. A escola, embora já livre da tutela da Igreja, continua a transmitir os valores morais da mesma e, sobretudo, a repetir os pressupostos das representações de gênero nas quais predomina a hierarquia patriarcal: “o macho adulto branco sempre no comando, e o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo”, como Caetano Veloso resume genialmente na canção O Estrangeiro, de 1989.
A Escola Municipal perto do sítio onde Fernandinho morava é descrita como uma “confusão de trinta, quarenta crianças, entre nove e dezesseis anos” (Albuquerque; Jannelli 1995: 35) divididos em duas classes por dois professores: Izael Diaz e Maria Nazareth Monteiro. Como todas as crianças eram da região, o menino desde sempre virou o alvo predileto de piadas, brincadeiras, difamação e todo o tipo de violência vindas em sua direção e que partiam não somente dos colegas, mas também de “seu Diaz”, o referido professor:

[…] seu Diaz, o senhor viu o Fernandinho? Anda feito mulher! Rildo gritava feito maluco. Izael Diaz me chamou: Fernandinho, ande, mostre para a gente como você anda! Fiquei vermelho de vergonha, mas dei meu show. Viu, professor? Anda feito mulher, feito veadinho! Eh, meninos, quando Fernandinho for grande vai para São Paulo ou para o Rio – dinheiro fácil para ele!, dizia Izael Diaz, o professor, e todos gargalhavam (Albuquerque; Jannelli 1995: 35).

 

Pierre Bourdieu, ao analisar a Escola como uma das instituições encarregadas de garantir a ordem dos gêneros, constata que, apesar da democratização do acesso à educação, persiste a sexualização dos cursos, carreiras e disciplinas, de modo que, por exemplo, nos departamentos mais cotados, as moças estão bem menos representadas e são “direcionadas sobretudo para as especializações tradicionalmente consideradas ‘femininas’ e pouco qualificadas […] ficando certas especialidades (mecânica, eletricidade, eletrônica) praticamente reservadas aos rapazes” (Bourdieu 1999: 111). No rastro do sociólogo podemos deduzir, calcados nos comentários do professor Izael Diaz que, para pessoas como Fernandinho – que se encontram na fronteira dos gêneros e que abrem mão do modelo hegemônico de masculinidade no contexto de uma cidade rural na qual um dos requisitos para o trabalho mais imediato é a força bruta somada ao vigor físico para a lida no campo –, o único caminho é emigrar para grandes cidades brasileiras na qualidade de profissional do sexo. O professor fecha qualquer possibilidade de existência futura do garoto na cidade, mesmo que viesse a exercer profissões tidas como ‘femininas’ – trabalho doméstico, corte e costura etc. –, pois pessoas como Fernandinho pagam o preço de não serem portadoras da chamada respeitabilidade e, portanto, devem ser excluídas dos espaços públicos a fim de não perturbarem a ordem da chamada divisão sexual do trabalho. Neste contexto, no qual a escola é mais uma instituição mantenedora, defensora e divulgadora das representações de gênero hegemônicas, é possível imaginar o mal-estar que a presença de Fernandinho causava: “Os comentários corriam e eu os captava. ‘Não podemos continuar a manter na escola um menino que se comporta como mulher’ (Albuquerque; Jannelli 1995: 37). E, consequentemente, a escola só conseguia diagnosticar a raiz de tal “problema” pelo mesmo viés patriarcal: “‘É assim porque não tem um pai que faça ele virar homem’” (Albuquerque; Jannelli 1995: 37).
Diante da difamação do filho na cidade, na igreja e na escola, Cícera se resignava a fazer o que achava mais acertado: surras e castigos para Fernandinho a fim de evitar que o falatório aumentasse. Um dia, porém, o filho mais velho, Aldenor, retorna à casa da mãe devido à separação da esposa e traz pela primeira vez para dentro da casa Farias as palavras que Cícera tanto se esforçou para serem mantidas longe de seu lar: “Palavras furiosas, envenenadas. Fernandinho é veado! Veado, pela primeira vez aquele som odioso ultrapassou os limites, ressoou dentro de nossa casa. Cícera ouviu, se assustou. Chamou a polícia e Aldenor foi internado” (Albuquerque; Jannelli 1995: 39). Aldenor foi e voltou do hospital várias vezes, pois sempre que retornava continuava a encher a casa de palavras envenenadas: “veado”, “homem-fêmea”. E Cícera o internava como louco, até que um dia voltou e desapareceu “para não voltar mais” (Albuquerque; Jannelli 1995: 41).
Numa última esperança, para silenciar qualquer tipo de dúvida em relação à masculinidade do filho e provar que ela sempre tivera razão, a mãe o inscreve nas Forças Armadas na esperança de que Fernandinho se tornasse um oficial do exército: “Deixei que ela fizesse para não roubar-lhe aquela última esperança. A última brecha de dúvida” (Albuquerque; Jannelli 1995: 44), visto que “Cícera não se dava conta, não se resignava” (Albuquerque; Jannelli 1995: 43). É desta forma que entra em cena a instituição Forças Armadas na vida de Fernandinho. A instituição que, segundo Cícera, daria a prova definitiva da masculinidade do filho ao mesmo tempo em que restituiria a ele a respeitabilidade abalada e um futuro promissor em direção ao céu, ao paraíso. Tudo muito bem desenhado, desde que a instituição o recebesse.
Embora não exista nenhuma lei ou disposição legal[10] que impeça a entrada e a permanência   de   homossexuais   nas   forças   armadas   brasileiras,   na   prática,   a instituição procura afastar desde o recrutamento a possibilidade de tê-los nos seus quadros, pois o “raciocínio muitas vezes é o de que o homossexual tem que ser identificado para ser evitado” (D’Araujo 2004). É exatamente o que ocorre com Fernandinho:

O sargento da comissão de exame abriu uma porta lateral, se acomodou no divã e me fez sinal para entrar: O tempo de eu me sentar e ele já estava com o pau para fora, carne murcha. Meus olhos se perderam no vazio, não queria. Inútil, ele levantou e botou o pau na minha cara. Chupa! Abaixei a cabeça e o olhar, Nossa Senhora das Dores: Não, isso eu não faço. Deu um passo atrás e fechou as calças: Você se traveste! Eu neguei, ele insistiu. Como não? Parece mais mulher do que homem! Você já esteve com mulher? Neguei novamente, mas era verdade, é verdade: nunca na minha vida estive com mulher. E com homens? Carne-murcha me olhava bem na cara, eu sentia, lia bem na minha consciência. Fiquei vermelho e admiti: sim, só três vezes, forçado. Forçado? Sim, forçado. Tinha finalmente me declarado e ele relaxou: Mas como passou pela sua cabeça se alistar? Por que você não se declarou antes das provas? Tinha medo de ir para a prisão. Não, você não vai para a prisão. A vida é sua e você pode se danar como quiser. Certificado de reservista, dispensado por excesso de contingente. Não escrevo que você é veado, assim você terá um problema a menos. Dois soldados me escoltaram através daquele vespeiro, até o último portão (Albuquerque; Jannelli 1995: 44-45).

 

Tradicionalmente, a vida militar é associada ao risco, à necessidade da prática da violência, à exposição ao perigo, a treinamentos intensivos e exercícios pesados, à valentia, atributos geralmente associados ao masculino, regidos basicamente pelos princípios da disciplina e da hierarquia, que por sua vez comporta a ideia de solidez moral e obediência profissional acima de qualquer direito ou dever profissional (D’Araujo, 2004). Dessa forma, os homossexuais são vistos como portadores de um “desvio de comportamento que ameaça o bom funcionamento técnico e moral da corporação militar”, pois não seriam capazes de “controlar impulsos e nem de respeitar os padrões morais condizentes com a profissão” (D’Araujo 2004). Deste modo, se entende a indignação do Sargento que pergunta a Fernandinho como lhe teria passado pela cabeça se alistar. E mais do que isso, se compreende o “favor” que o sargento entende fazer ao rapaz ao dispensá-lo escrevendo na carteira de reservista que a dispensa tinha se dado por “excesso de contingente”, pois numa sociedade cujas instituições aceitam, reproduzem e difundem somente as representações hegemônicas de gênero, calcadas na normalidade, na natureza e na moralidade, para Fernandinho restaria uma vida livre para a sua “danação”. Dessa forma, o sargento repete a sentença de vida futura de Fernandinho dada pelo professor Izael Diaz, pelo pároco e, em última instância, por Cícera. Fernandinho não vai ser militar, segue seu caminho em Campina Grande onde começa sua longa trajetória em direção ao inferno, o presídio de Rebibbia em Roma, onde,

Sem esforços, nos braços do demônio, na Europa chega-se em voz baixa, silenciosamente. […] Aqui a gente desaparece quieta, quieta, em voz baixa. Silenciosamente. Sós e desesperadas. De Aids e de heroína. Ou então dentro de uma cela, enforcada na pia. Como a Celma, que eu gostaria de lembrar. Dormia na cela ao lado, dentro deste outro inferno onde hoje vivo e que decidi não contar (Albuquerque & Jannelli 1995:134).

 

 

Princesa nasce dentro de um cárcere numa tentativa de fazer a autora lembrar- se que tinha nascido livre e que voltaria a sê-lo. A história contada por ela expõe o conflito entre o que o destino e a sorte reservaram para cada um de nós: nosso corpo e nosso mundo ideal que, por suas vezes, entram constantemente em conflito com os corpos e os valores que nos circundam, assim como o “eu” almejado determinado pela nossa autodeterminação. O cárcere aonde o livro veio à luz se configura como uma metáfora dos aprisionamentos do “eu”, aprisionado em um corpo que não escolheu, aprisionado em uma educação que não escolheu, aprisionado em uma sociedade que não escolheu. Deste modo, podemos conjeturar que ao final de sua escritura ela ainda estivesse a se perguntar sem obter nenhuma resposta: “Aldenor, eu – onde estava o erro? Nela? Em nós? Fora de todos nós? Cícera vivia simples: mulheres de um lado, homens do outro. E eu?” (Albuquerque; Jannelli 1995: 44).

 “MEN IN ONE SIDE, WOMEN ON THE OTHER. AND I?”

MASCULINITIES AND BRAZILIAN INSTITUITIONS IN THE CONTEXT OF

PRINCESA

Abstract: This paper analyzes the construction of hegemonic masculinity in the context of institutions family, church, school and military in the context of “Princesa” written by Fernanda Farias de Albuquerque. She, a brazilian transsexual, wrote her (auto) biography with Maurizio Jannelli, a former member of the Red Brigades, in a Roman prison. The book was published first in Italy, a fact that has caused a lot of discussion about the national literature, which for us always must appear in an eternal “entrelugar”.

Keywords: masculinities; Princesa; entrelugar; Brazilian instituitions.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Fernanda Faria; JANNELLI, Maurizio. A Princesa – depoimentos de um travesti brasileiro a um líder das Brigadas Vermelhas. Trad. Elisa Byington. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

D’ARAUJO, Maria Celina. Mulheres, homossexuais e Forças Armadas no Brasil. Painel: Women in the Armed Forces I. Research and Education in Defense and Security Studies, Chile: 2003. Disponível em:

<http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20080618-1.pdf>. Acesso em: 20 jan. 2016.

FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade I – A vontade do Saber. Trad. Maria Thereza da C. Albuquerque e J. A. Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.

GANDOLFI, Laura. Princesa: The textual space between translation and divergence. Ellipsis, v. 8, p. 75-90, 2010. Disponível em:

<https://www.researchgate.net/publication/49599363_Princesa_The_Textual_Space_Between_Translation_and_Divergence>. Acesso em: 12 mar. 2014.

GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora, MG: Ed. UFJF, 2005.

GNISCI. Armando. Creolizzare l’Europa: Letteratura e Migrazione. Roma: Meltemi Editore, 1983.

MISKOLSCI, Richard. O Desejo da Nação – Masculinidade e Branquitude no Brasil de fins do XIX. São Paulo: Annablume, 2012.

 MOSSE, George. Razzismo e Omosessualità. Entrevista Enzo Cuoco. Sodoma, a. 1, v.1, 1984. Disponível em:

<http://www.fondazionesandropenna.it/SodomaUno/114ENZOCUCCOStoria.pdf.>.  Acesso em: 19 jan. 2016.

PISANI, Anna Proto. L’identità ambigua: Il corpo maschile e femminile in Princesa di Fernanda Farias de Albuquerque. Narrativa, nuova serie, n. 30 – Centre de Recherches Italiennes de l’Université Paris Ouest Nanterre La Defènse, p. 241-258, 2008.

SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos. 2 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

VELOSO, Caetano. O Estrangeiro.   Estrangeiro.   São     Paulo: Polygram/Philips, 1989.

 

 

 

[1]Segundo dados colhidos no “Banca Dati Scrittori Immigrati in Lingua Italiana”. In: http://www.disp.let.uniroma1.it/basili2001/, de 93 escritores latino-americanos, 24 são brasileiros, dentre os quais destacamos Christiana de Caldas Brito, Vera Lúcia Oliveira, Júlio Monteiro Martins e Rosana Crispim, entre outros. Acesso em: 12 out. 2015.

 

[2] “Furthermore, the fact that the has been and continues to be considered as belonging to contemporary Italian literature (regardless of the fact that Fernanda de Albuquerque is by nationality Brazilian and large part of the text indeed deals with her life in Brazil, not Italy) necessarily generates a series of questions pertaining to national literary frameworks and the boundaries that in this case define Brazilian literature, on the one hand, and Italian, on the other” (Tradução nossa).

GANDOLFI, Laura. Princesa: The textual space between translation and divergence.

Disponível em http://www.researchgate.net/publication/49599363_Princesa_The_Textual_Space_Between_Translat ion_and_Divergence, acesso em 10 abr. 2014. Infelizmente não foi possível acessar o texto integral.

 

[3] Embora tenhamos concomitantemente ao lançamento do livro na Itália em 1994, alguns artigos sobre Princesa na imprensa escrita brasileira tais como: STYCER, Maurício, “Ex-terroristas me entenderam, diz travesti” in Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno São Paulo, 20/01/1994, p. 3; “O beijo da Princesa: Travesti brasileiro une-se o líder terrorista das Brigadas Vermelhas para lançar livro de memórias”, in Revista Veja, São Paulo, 26 de janeiro, 1994, p. 46.

 

[4] “[…] Fernanda Farias non è una vera e propria scrittrice, non lo è stata prima di questo testo e non lo sarà dopo. La dimensione letteraria del testo è dovuta a Jannelli, che invece possiede una vena letteraria e che tuttora continua a svolgere attività letteraria, come autore in ambito televisivo.” (tradução nossa)

PISANI, Anna Proto. L’identità ambigua: Il corpo maschile e femminile in Princesa di Fernanda Farias de Albuquerque. In: Narrativa, nuova serie, n. 30 – Centre de recherches Italiennes de l’Université Paris Ouest Nanterre la Defènse, 2008, p. 246.

 

[5] Para as citações estamos utilizando a tradução brasileira feita por Elisa Byington.

 

[6] Neste caso, traduziríamos esta frase assim: “o jogo tinha acabado. E eu, esgotado.”, pois rende melhor a ideia dos autores segundo nossa visão, pois o original é: “Il gioco era finito. Io sfinito.”

 

[7] “La confusione fra i sessi, quindi è considerata come um attacco contro l’interasocietà. Dal Medio Evo in poi, ed in misura maggiore nel XIX secolo, una delle accuse contro gli omossessuali è stata quella di assumere Il ruolo femminile nell’atto sessuale. La confusione fra i sessi e fra i corrispondenti ruoli economici e sociali che ne derive è completo” (Tradução nossa).

 

[8] “Storicamente La respeitabilità si basa su un certo tipo di divisione fra i sessi e si diffuse insieme Allá Idea del maschio, della superiorità maschile. Superiorità maschile significa superiorità eterosessuale” (Tradução nossa).

 

[9] “9. Não sabeis que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não vos deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem os que se entregam a práticas homossexuais de qualquer espécie, 10. nem ladrões, nem avarentos, nem viciados em álcool ou outras drogas, nem caluniadores, nem estelionatários herdarão o Reino de Deus” (1 Coríntios 6: 9-10).

 

[10] O artigo 235 do Código Penal Militar (Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969) denominado “Pederastia ou outro ato de libertinagem” define como crime “praticar ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.

 

 

 

Luciana M. Marchini Ulgheri, “Homens de um lado, mulheres do outro. E eu?” As masculinidades e as instituições brasileiras no contexto de Princesa, in Estação Literária, Volume 16, p. 106-120, jun. 2016]